sábado, 5 de setembro de 2009

NEGRA_Carlos Drummond Andrade

A negra para tudo
a negra para todos
a negra para capinar plantar
regar
colher carregar empilhar no paiol
ensacar
lavar passar remendar costurar cozinhar
rachar lenha
limpar a bunda dos nhozinhos
trepar.

A negra para tudo
nada que não seja tudo tudo tudo
até o minuto de
(único trabalho para seu proveito exclusivo)morrer.

A máquina do mundo_Carlos Drummond de Andrade

E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindona escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,

convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,

assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco o simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,

a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
"O que procuraste em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo."

As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge

distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber

no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar
na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que tantos
monumentos erguidos à verdade;

e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.

Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;

como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzisse
ma de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes

em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.

A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mão pensas.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Ao Santíssimo Sacramento_José de Anchieta

Oh que pão, oh que comida,
Oh que divino manjar
Se nos dá no santo altar
Cada dia.

Filho da Virgem Maria
Que Deus Padre cá mandou
E por nós na cruz passou
Crua morte.

E para que nos conforte
Se deixou no Sacramento
Para dar-nos com aumento
Sua graça.

Esta divina fogaça
É manjar de lutadores,
Galardão de vencedores
Esforçados.

Deleite de enamorados
Que com o gosto deste pão
Deixem a deleitarão
Transitória.
Quem quiser haver vitória
Do falso contentamento,
Goste deste sacramento
Divinal.

Ele dá vida imortal,
Este mata toda fome,
Porque nele Deus é homem
Se contêm.

É fonte de todo bem
Da qual quem bem se embebeda
Não tenha medo de queda
Do pecado.

Oh! que divino bocado
Oue tem todos os sabores,
Vindes, pobres pecadores,
A comer.

Não tendes de que temer
Senão de vossos pecados;
Se forem bem confessados,
Isso basta.

Que este manjar tudo gasta,
Porque é fogo gastador,
Que com seu divino ardor
Tudo abrasa.

É pão dos filhos de casa
Com que sempre se sustentam
E virtudes acrescentam
De contino.

Todo al é desatino
Se não comer tal vianda,
Com que a alma sempre anda
Satisfeita.

Este manjar aproveita
Para vícios arrancar
E virtudes arraigar
Nas entranhas.

Suas graças são tamanhas,
Que se não podem contar,
Mas bem se podem gostar
De quem ama.

Sua graça se derrama
Nos devotos corações
E os enche de benções
Copiosas.

Oh que entranhas piedosas
De vosso divino amor!
Ó meu Deus e meu Senhor
Humanado!

Quem vos fez tão namorado
De quem tanto vos ofende?!
Quem vos ata, quem vos prende
Com tais nós?!

Por caber dentro de nós
Vos fazeis tão pequenino
Sem o vosso ser divino,
Se mudar.

Para vosso amor plantar
Dentro em nosso coração
Achastes tal invenção
De manjar,

Em o qual nosso padar
Acha gostos diferentes
Debaixo dos acidentes
Escondidos.

Uns são todos incendidos
Do fogo de vosso amor,
Outros cheios de temor
Filial,

Outros com o celestial
Lume deste sacramento
Alcançam conhecimento
De quem são,

Outros sentem compaixão
De seu Deus que tantas dores
Por nos dar estes sabores
Quis sofrer.

E desejam de morrer
Por amor de seu amado,
Vivendo sem ter cuidado
Desta vida.

Quem viu nunca tal comida
Que é o sumo de todo bem,
Ai de nós que nos detém
Que buscamos!

Como não nos enfrascamos
Nos deleites deste Pão
Com que o nosso coração
Tem fartura.

Se buscarmos formosura
Nele está toda metida,
Se queremos achar vida,
Esta é.

Aqui se refina a fé,
Pois debaixo do que vemos,
Estar Deus e homem cremos
Sem mudança.

Acrescenta-se a esperança,
Pois na terra nos é dado
Quanto lá nos céus guardado
Nos está.

A claridade que lá
Há de ser aperfeiçoada,
Deste pão é confirmada
Em pureza.

Dele nasce a fortaleza,
Ele dá perseverança,
Pão da bem-aventurança,
Pão de glória.

Deixado para memória
Da morte do Redentor,
Testemunho de Seu amor
Verdadeiro.

Oh mansíssimo Cordeiro,
Oh menino de Belém,
Oh Jesus todo meu Bem,
Meu Amor.

Meu Esposo, meu Senhor,
Meu amigo, meu irmão,
Centro do meu coração,
Deus e Pai.

Pois com entranhas de Mai
Quereis de mim ser comido,
Roubai todo meu sentido
Para vós

Com o sangue que derramasses,
Com a vida que perdesses,
Com a morte que quisesses
Padecer.

Morra eu, por que viver
Vós possais dentro de mim;
Ganha-me, pois me perdi
Em amar-me.

Pois que para incorporar-me
E mudar-me em vós de todo,
Com um tão divino modo
Me mudais.

Quando na minha alma entrais
É dela fazeis sacrário,
De vós mesmo é relicário
Que vos guarda.

Enquanto a presença tarda
De vosso divino rosto,
O saboroso e doce gosto
Deste pão

Seja minha refeição
E todo o meu apetite,
Seja gracioso convite
De minha alma.

Ar fresco de minha calma,
Fogo de minha frieza,
Fonte viva de limpeza,
Doce beijo.

Mitigador do desejo
Com que a vós suspiro, e gemo,
Esperança do que temo
De perder.

Pois não vivo sem comer,
Como a vós, em vós vivendo,
Vivo em vós, a vós comendo,
Doce amor.

Comendo de tal penhor,
Nela tenha minha parte,
E depois de vós me farte
Com vos ver.
Amém.

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Crise na educação: por quê?

É com tristeza que nós, cidadãos, constatamos estar a escola em crise: ela não consegue desempenhar comeficácia a função de informar e, muito menos, a função formadora. Inúmeras tentativas já foram feitas no intuito de superaresta crise e melhorar a qualidade do ensino. Para tanto, os objetivos foram redefinidos,conteúdos mais atualizados foramacrescidos ao currículo, enquanto o antigo acervo de técnicas didáticas foi revisto, com novas estratégias de ação sendosucessivamente implantadas. Mas isto não resolveu o problema.Embora o esforço não tenha sido em vão, temos de reconhecer que não apresentou os resultados esperados,porquanto a crise revelou-se muito mais profunda do que de início aparentava, não se resumindo em simples questão dereformulação de objetivos, conteúdos ou estratégias. O que estava em crise eram os valores, e a escola, sendo umainstituição social, refletia a crise de valores que atingia a sociedade.O processo educativo sempre se encarregou de difundir os valores sobre os quais se estruturava a sociedade emque estava inserido: assim sendo, na Grécia de Péricles, o ideal era a formação do cidadão consciente e participante daadministração de sua cidade estado, na Roma dos Césares, almejava-se formar o político loquaz e o bravo guerreiro,durante a Idade Média, a meta era a formação do homem moralmente íntegro e do Cristão temente a Deus; por ocasião darevolução comercial e, posteriormente, industrial, nas sociedades que sofreram de forma mais aguda e intensa o impactodessa fase, propunha-se formar o burguês dotado de iniciativa e senso comercial. E assim foi ao longo dos séculos: cadasociedade e cada época histórica, de acordo com os valores sobre os quais se alicerçava, tinham um ideal de homem a serformado. E a escola, agência dessa sociedade, se encarregava de cumprir esse ideal.Mas, e agora, em pleno fim de século XX, que ideal de homem nossa escola pretende formar? Esta é a questãofundamental, para a qual precisamos encontrar uma resposta, pois, de outra forma, será infrutífera toda reformaeducacional. Enquanto não se souber que tipo de ser humano precisa ser formado, qualquer tentativa de reformular aescola, seja definindo objetivos e programando conteúdos, seja criando novas técnicas , será em vão, pois o que está sendoquestionado não é como educar, mas o para que educar. Em outras palavras, o que esta em jogo é o próprio sentido daeducação. E, por estar a educação destituída de sentido, apareceu como medidas paliativas e ilusórias os famososmodismos educacionais: um dia introduz-se uma nova técnica didática: noutro dia, a moda já é um novo conteúdo, cujaintrodução no currículo, alegasse, será a salvação do ensino. E assim, pulando de modismos em modismos, o professor e oaluno vão tentando cumprir suas tarefas, tendo, no entanto, ambos perdido de vista o sentido de seu objetivo: entramecanicamente numa sala de aula, sem saber por que nem para que esta desempenhando tal papel.Usando a moderna terminologia da cibernética, que é o novo modismo em matéria de educação, diríamos que aescola precisa definir qual será o output do sistema. Isto, no entanto, não é tarefa fácil, porque a própria sociedade nãoapresenta, claramente definido, o seu protótipo de homem.E porque a sociedade não quer determinar explicitamente este protótipo? Porque há um choque entre valoresproclamados e os valores reais. A sociedade em que vivemos se arvora na grande defensora dos valores humanísticos,que, desde os primórdios da cultura helênica, caracterizavam a civilização ocidental. Humanísticos, porque pregam orespeito e a valorização do ser humano como individualidade e como o fim em si mesmo. Baseiam-se na crença de que ohomem é um ser perfectível, capaz de ser modificado e se modificar; um ser cultural que, partindo da natureza, transcendeae cria o universo da cultura, um ser histórico, capaz de invenção e progresso.Portanto, tendo isto como pressuposto, o humanismo se valoriza pela caracterização do ser humano como um fimem si mesmo; pelo respeito a individualidade; pela crença na liberdade do homem de poder escolher e agir de formaautônoma; pela crença no auto-aperfeiçoamento, pois um ser que é capaz de invenção e progresso deve estar emconstante evolução; e, por fim, para que cada homem possa cumprir seu destino com a dignidade que a condição humanarequer, os valores humanísticos pregam a igualdade de oportunidade e solidariedade humana. Em síntese, esta seria aprofissão de fé de um humanista.Não obstante, enquanto a sociedade ocidental do século XX se proclama portadora dos valores humanísticos, seusvalores reais são bem outros: o progresso material é mais importante que o desenvolvimento dos padrões culturais eespirituais. Em outras palavras, acima do homem está o dinheiro; mais vale ter do que ser. O que significa que o homem émedido, avaliado e julgado pelo que aparenta e pelo que tem, e não pelo que é realmente. Portanto nossa sociedade tentacamuflar seus reais valores atrás do pedestal em que ostenta a bandeira do humanismo. E este choque que gera a crise aque aludimos a cima, pois, num confronto, os dois tipos de valores não podem coexistir. Quando um é conscientementeescolhido e explicitamente adotado, o outro deverá ser automaticamente rejeitado.É este o choque de valores que atingem nossa escola. Portanto, a tão alardeada crise da educação não é denatureza metodológica, nem financeira. É, antes de tudo, de caráter filosófico. Como toda pedagogia supõe uma filosofia,podemos afirmar que o que esta em crise, no fim do século XX, é a própria Filosofia, isto é, a própria concepção de homem,de mundo de vida.Se a sociedade como um todo, na situação conflitante em que se encontra, frente a valores tão contraditórios, nãosouber ou não quiser equacionar o problema, cabe a nós, educadores e educandos, mesmo que individualmente, cada umem sua sala de aula, traçar o rumo a ser atingido. Numa época de tantos valores antagônicos, se a solução não puder serglobal, que seja individual. Pois, como pode um educador pretender realizar seu trabalho, se nem se quer sabe o que desejaatingir? Como pode um aluno cursar todo o ensino básico sem ao menos ter um objetivo almejado?Portanto, antes de entrar em sua sala de aula, caro educador e caro aluno, pense bem nisso: que tipo desociedade queremos formar?Queremos uma sociedade pesada na balança do ter, que julga a si próprio e os outros pelo prisma da aparência,formando estereótipos rígidos, que vão cristalizar em preconceito? Ou queremos formar uma sociedade sadia, tanto físicaquanto psicologicamente, que esteja em harmonia consigo e com a natureza, que demonstre consciência dos seus direitose responsabilidades, dotada de senso crítico e capacidade de auto-analise, tendo em vista o aperfeiçoamento constante esenso de responsabilidade pelos destinos da humanidade?Cada educador e educando carrega nos ombros a responsabilidade desta escolha. (Regina Célia Cazaux Haydt, "Crise na educação: por quê?", Thot, n. 22, p. 45.)É com tristeza que nós, cidadãos, constatamos estar a escola em crise: ela não consegue desempenhar comeficácia a função de informar e, muito menos, a função formadora. Inúmeras tentativas já foram feitas no intuito de superaresta crise e melhorar a qualidade do ensino. Para tanto, os objetivos foram redefinidos,conteúdos mais atualizados foramacrescidos ao currículo, enquanto o antigo acervo de técnicas didáticas foi revisto, com novas estratégias de ação sendosucessivamente implantadas. Mas isto não resolveu o problema.Embora o esforço não tenha sido em vão, temos de reconhecer que não apresentou os resultados esperados,porquanto a crise revelou-se muito mais profunda do que de início aparentava, não se resumindo em simples questão dereformulação de objetivos, conteúdos ou estratégias. O que estava em crise eram os valores, e a escola, sendo umainstituição social, refletia a crise de valores que atingia a sociedade.O processo educativo sempre se encarregou de difundir os valores sobre os quais se estruturava a sociedade emque estava inserido: assim sendo, na Grécia de Péricles, o ideal era a formação do cidadão consciente e participante daadministração de sua cidade estado, na Roma dos Césares, almejava-se formar o político loquaz e o bravo guerreiro,durante a Idade Média, a meta era a formação do homem moralmente íntegro e do Cristão temente a Deus; por ocasião darevolução comercial e, posteriormente, industrial, nas sociedades que sofreram de forma mais aguda e intensa o impactodessa fase, propunha-se formar o burguês dotado de iniciativa e senso comercial. E assim foi ao longo dos séculos: cadasociedade e cada época histórica, de acordo com os valores sobre os quais se alicerçava, tinham um ideal de homem a serformado. E a escola, agência dessa sociedade, se encarregava de cumprir esse ideal.Mas, e agora, em pleno fim de século XX, que ideal de homem nossa escola pretende formar? Esta é a questãofundamental, para a qual precisamos encontrar uma resposta, pois, de outra forma, será infrutífera toda reformaeducacional. Enquanto não se souber que tipo de ser humano precisa ser formado, qualquer tentativa de reformular aescola, seja definindo objetivos e programando conteúdos, seja criando novas técnicas , será em vão, pois o que está sendoquestionado não é como educar, mas o para que educar. Em outras palavras, o que esta em jogo é o próprio sentido daeducação. E, por estar a educação destituída de sentido, apareceu como medidas paliativas e ilusórias os famososmodismos educacionais: um dia introduz-se uma nova técnica didática: noutro dia, a moda já é um novo conteúdo, cujaintrodução no currículo, alegasse, será a salvação do ensino. E assim, pulando de modismos em modismos, o professor e oaluno vão tentando cumprir suas tarefas, tendo, no entanto, ambos perdido de vista o sentido de seu objetivo: entramecanicamente numa sala de aula, sem saber por que nem para que esta desempenhando tal papel.Usando a moderna terminologia da cibernética, que é o novo modismo em matéria de educação, diríamos que aescola precisa definir qual será o output do sistema. Isto, no entanto, não é tarefa fácil, porque a própria sociedade nãoapresenta, claramente definido, o seu protótipo de homem.E porque a sociedade não quer determinar explicitamente este protótipo? Porque há um choque entre valoresproclamados e os valores reais. A sociedade em que vivemos se arvora na grande defensora dos valores humanísticos,que, desde os primórdios da cultura helênica, caracterizavam a civilização ocidental. Humanísticos, porque pregam orespeito e a valorização do ser humano como individualidade e como o fim em si mesmo. Baseiam-se na crença de que ohomem é um ser perfectível, capaz de ser modificado e se modificar; um ser cultural que, partindo da natureza, transcendeae cria o universo da cultura, um ser histórico, capaz de invenção e progresso.Portanto, tendo isto como pressuposto, o humanismo se valoriza pela caracterização do ser humano como um fimem si mesmo; pelo respeito a individualidade; pela crença na liberdade do homem de poder escolher e agir de formaautônoma; pela crença no auto-aperfeiçoamento, pois um ser que é capaz de invenção e progresso deve estar emconstante evolução; e, por fim, para que cada homem possa cumprir seu destino com a dignidade que a condição humanarequer, os valores humanísticos pregam a igualdade de oportunidade e solidariedade humana. Em síntese, esta seria aprofissão de fé de um humanista.Não obstante, enquanto a sociedade ocidental do século XX se proclama portadora dos valores humanísticos, seusvalores reais são bem outros: o progresso material é mais importante que o desenvolvimento dos padrões culturais eespirituais. Em outras palavras, acima do homem está o dinheiro; mais vale ter do que ser. O que significa que o homem émedido, avaliado e julgado pelo que aparenta e pelo que tem, e não pelo que é realmente. Portanto nossa sociedade tentacamuflar seus reais valores atrás do pedestal em que ostenta a bandeira do humanismo. E este choque que gera a crise aque aludimos a cima, pois, num confronto, os dois tipos de valores não podem coexistir. Quando um é conscientementeescolhido e explicitamente adotado, o outro deverá ser automaticamente rejeitado.É este o choque de valores que atingem nossa escola. Portanto, a tão alardeada crise da educação não é denatureza metodológica, nem financeira. É, antes de tudo, de caráter filosófico. Como toda pedagogia supõe uma filosofia,podemos afirmar que o que esta em crise, no fim do século XX, é a própria Filosofia, isto é, a própria concepção de homem,de mundo de vida.Se a sociedade como um todo, na situação conflitante em que se encontra, frente a valores tão contraditórios, nãosouber ou não quiser equacionar o problema, cabe a nós, educadores e educandos, mesmo que individualmente, cada umem sua sala de aula, traçar o rumo a ser atingido. Numa época de tantos valores antagônicos, se a solução não puder serglobal, que seja individual. Pois, como pode um educador pretender realizar seu trabalho, se nem se quer sabe o que desejaatingir? Como pode um aluno cursar todo o ensino básico sem ao menos ter um objetivo almejado?Portanto, antes de entrar em sua sala de aula, caro educador e caro aluno, pense bem nisso: que tipo desociedade queremos formar?Queremos uma sociedade pesada na balança do ter, que julga a si próprio e os outros pelo prisma da aparência,formando estereótipos rígidos, que vão cristalizar em preconceito? Ou queremos formar uma sociedade sadia, tanto físicaquanto psicologicamente, que esteja em harmonia consigo e com a natureza, que demonstre consciência dos seus direitose responsabilidades, dotada de senso crítico e capacidade de auto-analise, tendo em vista o aperfeiçoamento constante esenso de responsabilidade pelos destinos da humanidade?Cada educador e educando carrega nos ombros a responsabilidade desta escolha.


(Regina Célia Cazaux Haydt, "Crise na educação: por quê?", Thot, n. 22, p. 45.)

AUTOPSICOGRAFIA_Fernando Pessoa

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas da roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração.

sábado, 29 de agosto de 2009

Razão de Ser_paulo leminsky

Escrevo. E pronto.
Escrevo porque preciso,
preciso porque estou tonto.
Ninguém tem nada com isso.
Escrevo porque amanhece,
E as estrelas lá no céu
Lembram letras no papel,
Quando o poema me anoitece.
A aranha tece teias.
O peixe beija e morde o que vê.
Eu escrevo apenas.
Tem que ter por quê?

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Um debate entre Chomsky e Foucault

Daniel Mermet

Este texto é parte de uma discussão, em francês e inglês, protagonizada por Noam Chomsky e Michel Foucault na Escola Superior de Tecnologia de Eindhoven (Países-Baixos), em novembro de 1971. Quase quarenta anos depois, é ainda muito interessante relê-lo, quer pela inteligência dos argumentos dos debatedores, quer como retrato de uma época, que hoje parece tão distante (nota da edição brasileira).

Chomsky: A desobediência civil implica um desafio direto a isso que o Estado reivindica, erradamente em minha opinião, ser a lei. (…) Conduzir uma ação que impeça o Estado de cometer crimes é completamente justo, assim como violar o código de trânsito para impedir um homicídio. Se eu ultrapasso um sinal vermelho para impedir que um grupo de pessoas seja metralhado, não há um ato ilegal, mas de assistência a pessoas em perigo. Nenhum juiz em sã consciência me incriminaria.

Foucault: Nos Estados Unidos, quando comete um ato ilegal, você o justifica em função de uma justiça ideal ou de uma legalidade superior ou pela necessidade da luta de classes, por ser essencial para o proletariado naquele momento em sua luta contra a classe dominante?
Chomsky: Creio que, na maioria das vezes, seria muito razoável agir contra as instituições legais de uma determinada sociedade, se isso permitisse abalar suas fontes de poder e opressão. No entanto, em larga medida, a lei existente representa certos valores humanos respeitáveis. Corretamente interpretada, essa lei permite contornar as ordens do Estado. Creio que é importante explorar esse fato e explorar os domínios corretamente definidos da lei e, a seguir, talvez agir apenas contra os que ratificam um sistema de poder.


Foucault: Então, é em nome de uma justiça mais pura que você critica o funcionamento da justiça. Mas, se a justiça está em jogo num combate, é como instrumento de poder; não é na esperança de que um dia, finalmente, nesta sociedade ou em outra, as pessoas sejam recompensadas de acordo com seu mérito ou punidas conforme os seus erros. Em vez de pensar na luta social em termos de justiça, é preciso pensar na justiça em termos de luta social. O proletariado não luta contra a classe dirigente por considerar que essa guerra é justa. O proletariado luta contra a classe dirigente porque, pela primeira vez na história, quer tomar o poder. E porque quer derrubar o poder da classe dirigente, considera que essa guerra é justa.


Chomsky: Não concordo.


Foucault: Faz-se a guerra para ganhar, não porque ela é justa.

Chomsky: Pessoalmente, não concordo. Por exemplo, se eu me convencesse de que a ascensão do proletariado pudesse levar a um Estado policial terrorista, onde a liberdade, a dignidade e as relações humanas decentes desaparecessem, eu tentaria impedi-la. Acho que a única razão para apoiar essa eventualidade é acreditar, com ou sem razão, que os valores humanos fundamentais possam se beneficiar com essa transferência de poder.


Foucault: Quando o proletariado tomar o poder, é possível que ele exerça contra as classes sobre as quais tenha triunfado um poder violento, ditatorial e até mesmo sangrento. Não vejo que objeção se possa fazer a isso. Agora, você me dirá: e se o proletariado exerce esse poder sangrento, tirânico e injusto contra si mesmo? Então, eu responderei: isso só pode ocorrer se o proletariado não tiver tomado o poder realmente, mas, sim, uma classe externa ao proletariado ou um grupo de pessoas, uma burocracia ou os restos da pequena burguesia.


Chomsky: Essa teoria da revolução não me satisfaz por uma série de razões, históricas ou não. Mesmo que a aceitássemos no âmbito da argumentação, essa teoria sustenta que o proletariado tem o direito de tomar o poder e de exercê-lo com violência, injustiça e sangue, sob o pretexto, a meu ver errôneo, de que isso levará a uma sociedade mais justa, onde o Estado se enfraquecerá e onde os proletários formarão uma classe universal etc. Sem essa justificativa futura, a idéia de uma ditadura violenta e sangrenta do proletariado seria perfeitamente injusta (...) Sou muito cético quanto a uma ditadura violenta e sangrenta do proletariado, principalmente quando ela é expressa por representantes autodesignados de um partido de vanguarda que — e temos experiência histórica suficiente para saber ou prever isso — serão simplesmente os novos dirigentes dessa sociedade.